01 junho 2004

Por principio.


Sem o compromisso necessário, retribuo o afecto que me ofereces-te. Não assumo nenhuma pressão, um voltar atrás, nem mesmo uma imagem em formato de recordação, sobre mim ou sobre o que eu fui para ti. Solto a vontade de continuar, agarrando a tua semelhança com as nuvens, virando sempre para o lado mais errado possível. Como se a brisa pudesse mentir ao meu ouvido, todas as estórias contadas, entre nós, em momentos alternados, mãos e pés, cruzados em união. O estado alienado de todo o meu ritmo, compassado, permitiu que tudo, o meu todo, em todo o tempo, pudesse dizer-te com a liberdade verdadeira, o espaço nada físico, vazio, sem a energia que todo o nosso tempo foi usada na colagem do nós, como se fosse o eu no plural. É curioso como sem saberem, algumas pessoas referem um ponto comum, uma assinatura típica da minha instabilidade. É curioso como todas essas pessoas dizem, que engraçado, o rosto de todas as tuas mulheres no papel, é sempre um rosto com a mesma expressão. Pode ser. Pode não ser. Não sei se realmente é. Não sei. Por vezes elas até são, um rosto, o mesmo rosto, a marca de um momento real e marcante, como se rasgassem as minhas veias, uma depois da outra, lentamente, recolhendo o meu sangue, para assinarem o teu nome no meu imaginário. Morro. Célula atrás de célula. Memória atrás de memória. Os teus beijos. Os teus desejos. Morro. Abraço-te com carinho, amor perdido.



Sou teimoso? Foda-se, e depois, não posso? Não posso ter as minhas certezas e defende-las? Mesmo que ninguém concorde, mesmo que tudo seja diferente, diferente do comum, de todos os outros? Foda-se, tenho de gostar de azul como tu? Estou errado em gostar de misturar o azul com verde, ou menos azul que todos os azuis que vocês usam? Não me sinto bem se tiver que usar o gosto dos outros, que me oprimem. O Eduardo Beauvalet diz que sou irreverente. Pois, deves ter razão, mas mesmo assim, porque não posso ser? Foda-se, já escrevi muitos foda-se, não foi? Então, foda-se, vão todos para o caralho. Pronto. Palhaços.


A vida que eu já vivi. Pois, pois. Vê, que até eu volto todas as manhãs, sempre igual.


Incúria. Masturbação de ansiedade. Nunca sem vir tarde. Como de nunca quem eu fui, nem tarde demais nem sem me ver com pressa, mesmo até chegar sem desistir. Procurando, sem largar, onde ela me deixou, tempo quebrado, o oxigénio terminado e queimado.


Reciclagem, o caralho. Morte às cidades. Lixo na tromba desses burgueses da treta, armados em gentalha com responsabilidades para com o mundo. Vão cavar batatas, seus urbanoides da treta. Caixotes de merda, pulgas existencialistas. Queres ecologia, foda-se, não poluas o ar com o teu tabaco da merda, os teus peidos de merda acumulada.


No interior, nocturno, sem possibilidades de descobrir luzes de referência, nunca perco as gentes que me encaminham. Caminhos de terras reconhecidas, calcadas pelos meus passos, que me conduzem a espaços determinados pelas minhas necessidades reais. Sem pregões. Nem pregas no meu olhar. Abraço o mar de lágrimas derramadas depois das mortes que senti, na minha negra existência. Cruzo o olhar com a indicação que tenho de seguir, sempre atrás de qualquer que seja o teu, a tua, o sempre, seguir-te num bairro que existe sem nunca o reconhecer. Com ternura, no meu olhar, minto-te. Sem coordenadas, sentes a tristeza da mentira que tem de ser, de que realmente tem de existir no meu discurso. Queixas-te com razão ou não tens razão de te queixar, sentindo a imaginação além do nosso horizonte sem principio nem fim, mal eu te minta carinhosamente? Aquela árvore agarra-me ternamente, ancora plantada na minha frente, pelas minhas mãos, pela educação conservadora, a minha.


A morte, a doce morte que a minha Avó escolheu. Contra a moral, falsa, a sua moral falsa e católica, num estado laico apodrecido com as suas entranhas expostas. A morte, a doce morte que abraçou a minha Avó na sua escolha.


Algures entre mim, agora, e o que já fui, passado ainda marcante, encontra-se o que sempre deveria ter sido. Por uma lógica menos conseguida, uma compressão de forças direccionadas para o meu caminho, traçado, definido anteriormente, não por mim enquanto feto mas por todos os que me arrancaram da ignorância amada. Não consegui ser o definido, não me permiti ser o que me foi definido, por ter de conseguir ir sem voltar para essa ignorância passada. Família, valores valiosos que desconheço sempre, ao longo do tempo que corre num dia. Se tudo faz sentido, significado? Para mim, sim. Sempre teve sentido o que fiz. O que os outros pensaram que seria, não sei, imagino. Mas sempre senti que os valores que desconheço constantemente, explodem como cataratas de água cristalina como o sangue, sempre me habituei a senti-los, são importantes para o clarear do caminho que desconheço e percorro.


Porra, lá está o sacana do Pepe a falar dele. Sempre ele e o seu umbigo.


No bairro. Amélia, jovial e de vestido verde pálido, caminha com sedução pela rua onde moro. Abre a porta do seu prédio, em frente do meu, chegada de não sei que sitio, com a mão esquerda. Na outra mão, leva um saco plástico branco, manchado, parece sangue, que pousa cuidadosamente no chão lavado e a cheirar a maçãs. Dobra o corpo de bons atributos, abre o saco. O vestido, típico vestido de mulher segura dos seus quereres, solto, translúcido, deixa-me aperceber o desenho das pernas da Amélia. Perturbado, afasto-me da janela, dirijo-me à cozinha. Abro a porta do congelador, o frio relaxa-me. Penso na minha pequena perversão, sorrio da minha cumplicidade. Amélia sabe que estou sempre à janela, na janela de frente para o seu prédio, sempre na mesma hora, no mesmo instante. Conhece a minha motivação, voyeur, o calor que tenho sempre que vejo o seu caminhar na minha rua, no nosso espaço comum. Provoca-me. Volto à janela, e a Amélia, com movimento de fêmea felina no cio, pernas afastadas como se estivesse a procurar o equilíbrio necessário para prolongar o meu desejo, retira do seu saco de plástico, um objecto que não percebo. Roda a cabeça, olha-me através do vidro, queima-me os olhos, reboliça o meu sangue, mostra-me o que tem na mão. Assustado como um puto apanhado de surpresa na sua primeira punheta, afasto-me da janela. Escondo-me na minha sombra, projectada na parede do fundo da sala. Cobarde, fiquei todo suado. Muito devagar, aproximo-me da janela, espreito. Merda, a Amélia já lá não está. Sou mesmo estúpido. Não consigo olhar, fixo, directamente nos olhos de uma mulher.


Estou cansado. Muito cansado. Não consigo contar mais estórias, inventadas e vividas.


Ouve, podes apagar as luzes? Estou a ficar cego. Além disso, dói-me muito a cabeça. Espera, não falas assim tão alto. Vou chamar um táxi. Quero sair de casa e viajar. Mesmo que seja num carro, quero viajar. Falta-me esse bem estar que sempre obtive no viajar. Como é, já apagas-te as luzes? Todas as luzes que me incomodam? Vá, não me chateies com essas perguntas parvas, apaga as luzes que quero sair. Vá, deixa-me. Eu voltarei, sei que voltarei. O táxi já está à espera lá embaixo na rua. Onde pus o meu dinheiro? Ah, está aqui. Bom. Dá-me um beijo, adeus.


Parado, torcido, podre, embrutecido, sozinho, cego, desprezado, revoltado, morte, regresso, fim.




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